Agronegócios
Consumo de carne desaba na Argentina
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Assim como a maioria dos argentinos, Sabrina Pozo costumava comer carne várias vezes por semana. A inflação nas alturas e a forte desvalorização do peso desde abril, no entanto, a obrigaram a mudar a dieta.
“Meus hábitos mudaram muito. Antes, talvez, eu fizesse bife à milanesa uma vez por semana e carne assada uma vez por semana”, disse Sabrina, de 36 anos. “Agora, talvez, fique sem fazer a carne assada ou opte por fazer frango, que é um pouco mais barato”, acrescentou a comissária de bordo, que mora com a filha em um apartamento em Buenos Aires. “Mais massas, mais arroz”.
Quanto mais o país mergulha na crise econômica, menos a carne bovina aparece na mesa das famílias de classe média, segundo análise feita pela Reuters a partir de dados do setor de carne e de entrevistas com consumidores, açougueiros e pecuaristas. Esse é um dos sinais mais claros de como o poder de compra dos argentinos tem sido dizimado pela inflação, que deve superar os 44% até o fim do ano, segundo pesquisa recente do Banco Central.
Os argentinos entrevistados disseram que não podem mais comprar tanta carne quando costumavam e que, agora, escolhem alimentos mais baratos. Açougueiros disseram que houve forte queda nas vendas de carne nos últimos meses. Pecuaristas e frigoríficos, que dependem dos consumidores domésticos para a maior parte de suas vendas, disseram que só estão conseguindo manter a cabeça fora da água graças ao aumento das exportações para Rússia e China, principais compradores externos de carne argentina.
Para os argentinos, nada disso é fácil de engolir. A maioria da população vê o consumo de carne como parte de sua identidade cultural. “Os argentinos, por toda sua vida, sempre comeram carne”, lembrou Javier Madeo, de 45 anos, dono de um açougue em Buenos Aires. Os argentinos reduziram gradualmente o consumo de carne nos últimos 60 anos, mas continuam entre os maiores consumidores do mundo. Em setembro, entretanto, uma estatística pouco noticiada da câmara da indústria e comércio de carnes do país, a Ciccra, revelou uma nova realidade: o consumo de carne havia caído para uma média anual de 49 quilos per capita naquele mês.
É um declínio de quase 17% em relação ao mês anterior. Ainda mais significativo é o fato de ter sido um nos menores níveis de consumos já registrados em 60 anos. Em outras duas ocasiões no período analisado, o consumo por pessoa ficou abaixo desse patamar: em fevereiro de 2017 e em março de 2008, mas essas quedas foram influenciadas por menos dias úteis, feriados e por uma disputa entre governo e o setor agrícola.
Tudo isso são más notícias para o presidente do país, Mauricio Macri, que enfrenta impopularidade e se depara com uma difícil batalha para se reeleger em outubro de 2019. Seus cortes aos subsídios da eletricidade, água e gás de cozinha buscaram romper com os ciclos de ascensão e queda econômica do país, mas acabaram tornando a vida dos argentinos mais cara. Ele corre o risco de perder o apoio da classe média.
Em 2017, os argentinos – e os uruguaios -, ainda lideraram o consumo de carne no mundo, segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). De filés a linguiças, as famosas carnes argentinas de alta qualidade dominam os cardápios dos cafés e churrascarias do país, conhecidas como “parrillas”. Mas o preço da carne subiu – 9% só em setembro, na comparação com agosto-, segundo dados do IPVCA. Em relação a setembro de 2017, a alta foi de 39%. Em setembro, a inflação na Argentina foi de 6,5%. Os salários não têm acompanhado a elevação dos preços, o que aumenta as aflições.
Os argentinos já viveram disparadas na inflação no passado. Durante a devastadora crise financeira de 2001/2002, as adversidades econômicas derrubaram o consumo de carne. Um surto de febre aftosa no país, no entanto, afetou as exportações e obrigou os produtores a vender mais no mercado interno, a preços mais baixos. Como resultado, os argentinos puderam, em grande medida, saciar o apetite por carnes.
A nova queda no consumo é um grave golpe para a indústria de carne argentina, que já enfrentava o impacto de uma das piores secas em anos, que afetou as pastagens entre o fim de 2017 e meados de 2018. A indústria de carne depende do mercado doméstico para cerca de 86% das vendas, segundo a Ciccra. A forte demanda na China e na Rússia ajudou o setor a compensar as perdas do mercado doméstico, mas as exportações, embora em alta, representam pequena parte das vendas.
Apesar da boa fama da carne argentina, os embarques são muito menores que o de outros grandes exportadores, como Brasil e Austrália, segundo o consultor Matias Sara. Por anos, a burocracia e as políticas do governo para o mercado doméstico foram um obstáculo para o crescimento das exportações.
Macri, um defensor do livre mercado, cortou os impostos sobre as exportações quando assumiu o governo para tentar impulsionar a atividade da economia, até então fechada. Posteriormente, ele reintroduziu as taxas sobre as exportações, para tentar equilibrar o orçamento.